Quando o Estado lê a lei ao pé da letra — só quando convém A ironia tributária entre a Lei nº 15.270/2025, a LC nº 123/2006 e o STF Quem atua no direito tributário brasileiro já conhece o roteiro. Quando a norma é usada para autuar o contribuinte, o Estado exige interpretação literal, rigor...

26 de dezembro de 2025
Contábeis

A ironia tributária entre a Lei nº 15.270/2025, a LC nº 123/2006 e o STF

Quem atua no direito tributário brasileiro já conhece o roteiro. Quando a norma é usada para autuar o contribuinte, o Estado exige interpretação literal, rigor técnico e obediência absoluta ao texto legal. Já quando a mesma lei favorece o contribuinte, surge a criatividade: interpretações “sistêmicas”, FAQs, perguntões, orientações internas e atos administrativos que, curiosamente, passam a “explicar” o que a lei realmente quis dizer.

Esse contraste voltou ao centro do debate com a edição da Lei nº 15.270/2025, a manutenção da Lei Complementar nº 123/2006 (Simples Nacional) e a recente postura interpretativa da Receita Federal, materializada em orientações administrativas marcadas por contradições e extrapolação de competência.

 

1. A literalidade seletiva do Estado

Quando o assunto é penalidade, multa ou exigência tributária, a Administração costuma invocar o velho brocardo: "a lei não contém palavras inúteis". Cada vírgula é levada a sério. Cada prazo é fatal. Cada formalidade é inegociável.

Entretanto, quando a mesma lei concede isenção, benefício ou tratamento favorecido, a literalidade desaparece. Em seu lugar, surge a interpretação “conveniente”, normalmente embalada por atos infralegais que passam a dizer o que o legislador deveria ter escrito.

O caso recente envolvendo a tributação de lucros, a Lei nº 15.270/2025 e o Simples Nacional é um exemplo didático desse fenômeno.

 

2. O que diz a Lei Complementar nº 123/2006

A LC nº 123/2006, norma de hierarquia superior, instituiu o regime do Simples Nacional e garantiu, de forma expressa, que os lucros apurados e regularmente contabilizados pelas empresas optantes podem ser distribuídos aos sócios sem tributação adicional na pessoa física.

Esse não é um favor do Estado. É uma opção legislativa clara, feita por Lei Complementar, exatamente como exige o art. 146, III, da Constituição Federal.

Enquanto a LC não for alterada por outra Lei Complementar, o regime jurídico nela previsto permanece íntegro.

 

3. A Lei nº 15.270/2025 e o limite da lei ordinária

A Lei nº 15.270/2025, por sua vez, é uma lei ordinária que introduziu regras gerais de tributação sobre lucros e dividendos a partir de 2026.

O problema não está na existência da lei ordinária, mas na tentativa — direta ou indireta — de utilizá-la para restringir ou esvaziar benefício previsto em Lei Complementar, sem a edição de uma nova LC.

Aqui, o debate deixa de ser político ou econômico e passa a ser constitucional.

 

4. O STF já decidiu: e decidiu há mais de 10 anos

O ponto central é que essa discussão não é nova. O Supremo Tribunal Federal já enfrentou o tema de forma categórica.

 

 Tema 390 do STF (julgado em 18/12/2014)

O STF fixou tese clara:

Lei ordinária não pode restringir, suprimir ou esvaziar benefício fiscal concedido por lei complementar.

 

 ADI 939/DF

Na mesma linha, o STF reafirmou que normas gerais de direito tributário e benefícios estruturais devem respeitar a hierarquia normativa, sendo vedado à lei ordinária contrariar disciplina veiculada por Lei Complementar.

Esses precedentes são vinculantes e devem ser observados não apenas pelo Judiciário, mas também pela Administração Pública, conforme o art. 927 do CPC.

 

5. O “perguntão” e a criatividade administrativa

Apesar desse cenário jurídico cristalino, a Receita Federal optou por trilhar outro caminho: o da interpretação administrativa expansiva, materializada em perguntões, FAQs e orientações internas.

Esses instrumentos, embora úteis para esclarecimentos operacionais, não têm força de lei e muito menos podem:

Quando isso ocorre, não se está diante de interpretação, mas de inovação normativa disfarçada, algo que o ordenamento jurídico simplesmente não autoriza.

 

6. A ironia final

O mesmo Estado que exige do contribuinte:

é o Estado que, quando lhe convém arrecadar mais, trata a lei como sugestão e a Constituição como obstáculo interpretável.

A boa notícia é que o sistema jurídico brasileiro ainda possui antídotos contra esse tipo de excesso: a Constituição, a Lei Complementar e a jurisprudência consolidada do STF.

 

7. Conclusão

A tentativa de relativizar a LC nº 123/2006 por meio da Lei nº 15.270/2025, ou pior, por atos administrativos como “perguntões”, não se sustenta juridicamente.

O Tema 390 do STF e a ADI 939/DF não deixam margem para dúvidas: lei ordinária não se sobrepõe à lei complementar.

Se a literalidade da lei vale para o contribuinte, ela deve valer também para o Estado — inclusive quando o resultado não favorece a arrecadação.

No Estado de Direito, criatividade pode ser virtude na literatura. No direito tributário, chama-se ilegalidade.

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